Na praia

As crianças se encontram nas praias dos mundos sem fim.

O céu infinito está imóvel lá em cima e a água inquieta está revolta. Na praia dos mundos sem fim as crianças se encontram entre gritos e danças.

Constroem as suas casas de areia e brincam com suas conchas vazias. Tecem de folhas secas os seus botes e, sorrindo, os largam a flutuar no vasto mar. As crianças se divertem na praia dos mundos.

Não sabem nadar, não sabem lançar redes. Os pescadores de pérolas mergulham em busca de pérolas, os mercadores navegam em seus navios, enquanto as crianças ajuntam seixos e os espalham de novo. Não procuram tesouros escondidos, nem sabem lançar redes.

O mar encapela-se entre risos, e, pálido, fulgura o sorriso da praia do mar… As ondas que trazem a morte cantam para as crianças baladas sem sentido, tal a mãe que embala o berço de seu filho. O mar brinca com as crianças, e, pálido, fulgura o sorriso da praia do mar…

As crianças se encontram na praia dos mundos sem fim. A tempestade vagueia pelo céu sem caminhos; soçobram navios nos ínvios mares; a morte anda às soltas, e as crianças brincam. Na praia dos mundos sem fim é que se dá o grande encontro das crianças.

Rabindranath Tagore, 1961

 

No poema A praia, do poeta indiano Tagore, o tempo parece infinito, circular, imutável. A praia descrita por ele não é propriamente a praia das fotos da propaganda. Há algo de inóspito.

Quase que por milagre, as crianças dançam e gritam, não estão desorientadas na imensidão. Podem dançar e gritar porque estão na praia dos mundos sem fim, espaço de sustentação entre o céu e o mar infinitos. Há um sentido ritualístico, de celebração nessa dança, que precisa da praia/mãe sustentando um lugar a partir do qual as crianças possam ser e celebrar.

A mãe/praia apresenta para a criança um mundo simples, em que a sobrevivência está assegurada, que permite uma exploração despreocupada, sem exigir uma integração precoce ou defensiva. A brincadeira é tão frágil quanto uma folha seca navegando no vasto oceano, mas ela acontece.

O poema, em sua terceira estrofe, propõe um contraste entre os grandes gestos dos pescadores de perolas e mercadores e os pequenos gestos das crianças. Brincar é o oposto de manipular o mundo de modo onipotente. Novamente, a brincadeira supõe uma praia, uma oferta de mundo significativo e tranquilo, disponível para ser usado e manipulado

Na final do poema, o mar, antes infinito, se pessoaliza com seu sorriso furioso, com a sua capacidade de brincar e de afundar os navios, com suas ondas que trazem a morte e cantam para as crianças baladas sem sentido.

O brincar se dá em um mundo em que as relações são necessariamente marcadas pela ambivalência. Amor e ódio fazem parte de todas as relações. A criança dirige amor e ódio à mãe e ao pai e teme destruí-los. A criança é alvo do amor e do ódio e teme ser destruída. E o mais estranho é que em meio a tudo isso, elas possam se encontrar e brincar.

A mãe/praia sustenta essa brincadeira, mesmo sendo a origem e o alvo dos amores e dos ódios mais intensos.

O psicanalista Winnicott descreve, no livro Consultas Terapêuticas em Psiquiatria Infantil o atendimento de um menino de 7 anos. Diferentemente das crianças do poema de Tagore, a capacidade de brincar e de sonhar desse menino estava seriamente ameaçada. Ao oferecer ao menino algumas poucas sessões, Winnicott se propunha a tentar restaurar a capacidade dele de brincar e de sonhar.

Winnicott oferece para ele uma modalidade de atendimento que denomina de consultas terapêuticas. As consultas terapêuticas nada mais são do que alguns poucos encontros com as crianças e os pais.

Nos encontros com a criança, Winnicott se propõe a assegurar as condições para que ela entre sonhando na consulta e saia sonhando. O papel dele ali é o de não acordá-las. Com muita frequência, relata Winnicott, as crianças sonham com ele na noite anterior à consulta, de modo que o papel dele é se ajustar ao papel que a criança reservou para ele nos seus sonhos.

Nas consultas terapêuticas, o jogo do rabisco é o recurso usado durante a experiência de sonho compartilhado. Winnicott traça um rabisco no papel, a criança cria um desenho a partir dele. Depois a situação se inverte: o psicanalista é que deve criar um desenho a partir do rabisco da criança.

Nos relatos de caso de Winnicott, que trazem os desenhos das crianças, mas também os dele próprio, podemos entrar em contato com as características do traço desse psicanalista, seus desenhos sempre muito expressivos e surpreendentes, de alguém que consegue ser si mesmo sem perder de vista a necessidade de sustentar a postura profissional.

Invariavelmente, Winnicott conduz as conversas com as crianças para o mundo dos sonhos, perguntando a relação entre um determinado desenho que ela fez e os sonhos que ela costuma ter.

Com muita frequência, diante dessa pergunta, a criança se vê podendo sonhar algo de sua experiência que sabia sem saber que sabia. As crianças se surpreendem ao sonhar aspectos de suas experiências que elas não sabiam que lembravam. A partir disso, podem integrar, a partir do sonho compartilhado, experiências que estavam dissociadas.

No jogo do rabisco, a criança e o adulto vivem o estado de se deixar produzir algo, que é a condição para o brincar. Quanto mais imersos na brincadeira, menos há necessidade de o eu consciente assumir as rédeas. O sonho compartilhado se dá a partir do que Winnicott chama de experiência de não-integração.

Mas vamos ao caso do menino de 7 anos a quem ele propôs um atendimento na modalidade das consultas terapêuticas. Winnicott preparou o setting para viver com ele a experiência de sonhar compartilhado, mas se impressionou com a preguiça do menino. O menino transformou todos os rabiscos em imagens associadas a cordões. Um laço, um chicote, um cordão de ioiô, um cordão com um nó, um chicote. Toda a energia do menino estava absorvida pela ideia impregnante do barbante e não sobrava recurso para que ele pudesse se deixar transitar com Winnicott pelo universo dos sonhos. Qual um sonho recorrente associado a uma experiência traumática.

O sonho traumático é uma tentativa de elaboração de algo, mas ocorre um transbordamento da capacidade de simbolização e o sonho traumático invade a vida de vigília e o sujeito desperta angustiado. Há repetição de uma mesma cena, que absorve toda a tentativa de simbolização empreendida pelo sujeito.

Na entrevista com os pais, depois dos encontros com o menino, Winnicott pergunta a eles se há algo sobre a relação do menino com barbantes que gostariam de falar. Os pais ficam aliviados porque a pergunta de Winnicott os permite falar sobre uma coisa que os intriga. Eles contam que o menino costuma brincar com barbantes de maneira obcecada. Amarra todos os objetos da casa: a mesa na cadeira, um brinquedo no outro de modo que a casa fica parecendo uma grande teia confusa.

Qual um sonho traumático, os barbantes do menino também estavam nesse lugar de tentativa de elaborar algo da experiência, mas que não pode se concretizar adequadamente. Com isso, toda a capacidade de sonhar e de brincar fica comprometida.

Mas que tentativa é essa do menino? O que ele está tentando simbolizar por meio do barbante?

Usando a imagem do poema do Tagore é como se ele estivesse tentando reencontrar a praia dos mundos sem fim, na qual ele poderia encontrar o outro, brincar, gritar e dançar. Ele está prestes a perder a ligação com a praia. Nesse caso, para não cair no mundo sem fim, criaria para si um mundo interno, secreto e controlado de modo onipotente. Perderia os laços com a areia, as folhas secas, as conchas vazias. Ao mesmo tempo, seu gesto obcecado de tudo amarrar visaria resguardar alguma possibilidade de ligação com aquilo que está fora.

Para Winnicott, toda a questão do desenvolvimento está na transição entre o momento em que o corpo da mãe é a praia em que a criança brinca e o momento em que a criança passa a poder brincar em outras praias, e a perceber a si mesmo e a existência das praias.

O modo como se dá a separação é a grande questão para Winnicott: separação da mãe, concomitante a separação entre dentro e fora, concomitante a constituição da possibilidade de habitar o próprio corpo.

No meio do caminho, muitas vezes, a criança elege um ursinho ou um paninho para confortá-la. Esse objeto liberta a criança da dependência absoluta da mãe. Por meio da criação de um símbolo, a criança passa a habitar o mundo compartilhado.

No caso do menino, a cisão entre dentro e fora não é completa. Há alguma possibilidade de usar um objeto externo – os barbantes – para tentar lidar com as experiências internas – no caso, o temor da separação.

Entretanto, o cordão – que era para ser um símbolo, perde a sua propriedade de ser um símbolo e se torna a própria coisa que deveria simbolizar. O fetiche torna a criança patologicamente dependente do seu objeto-fetiche, ao mesmo tempo em que a torna patologicamente independente dos outros – um objeto parcial que supre as necessidades e toma o lugar da relação com os objetos totais.

O poema/sonho de Tagore é a possibilidade da elaboração dos aspectos inóspitos e perigosos da existência – que então não precisam ser negados – ao mesmo tempo em que é uma celebração da própria possibilidade de sonhar e de brincar.

As consultas terapêuticas buscam criar as condições para que a criança possa entrar em contato com esses aspectos perigosos e inóspitos, ao mesmo tempo em que se propõem a restaurar a capacidade das crianças de seguirem brincando e sonhando.

No caso desse menino atendido por Winnicott, as consultas terapêuticas permitiram que ele pudesse lançar mão de outros objetos e pudesse se lançar em outras brincadeiras.

2015-03-13 artigos 8