“… as ondas, o coração das trevas, os camarotes da morte, o de sempre se repete mortal no que é novo que passa rapidíssimo (Enrique Vila-Matas – “A Viagem Vertical”)” No mês de maio de 2009 foi realizado no Sesc Pinheiros, pelo Grupo Cena 11 de Dança, de Florianópolis, um experimento artístico intitulado “Sim Ações Integradas de Consentimento para Ocupação e Resistência – Ação # 2 – Platéia Teste”. Tratava-se de uma proposta na qual o público, sobre o palco, deveria interagir com a apresentação e, ao fim, expor suas impressões para os artistas.
Nada era sabido previamente quanto ao que aconteceria. O público não sabia o que seria apresentado, tampouco o Grupo sabia o que viria do público, a quem foi dada total liberdade.
Os bailarinos entraram em cena de cabeça baixa de modo que não se viam seus rostos. Davam passos lentos e pesados, fazendo, de mãos dadas, uma espécie de lento arrastão no público que, aos poucos, se espremia contra a parede ou escapava pelos vãos livres encontrados entre os artistas. O clima desse início durou toda a apresentação, na qual os artistas fizeram movimentos inertes, automáticos, repetitivos e sem interação com o público.
Mesclo aqui meu ponto de vista dessa experiência com as impressões dadas ao fim da apresentação por quem ali estava: sentimentos de vazio e morte davam lugar à raiva ou compaixão pelos artistas (ou pelos “personagens”), que chegavam a cair inertes no chão, às vezes de frente, como árvore que tomba sem resistência – um ou outro momento assim impactante quebrava a monotonia daquela apresentação-experimento, como que respondendo com um susto à pergunta que pairava insistente: onde está a vida? Desejos de fazer algo estapafúrdio que rompesse tal morbidez foram despertados, muito embora ninguém tenha posto tais desejos em ação. Tímidas tentativas de interação não foram correspondidas pelos artistas, que seguiam em isolamento. Era como andar na cidade: metrópole cheia de gente só, mergulhada no mesmo. Parecia estar diante de algo morto, mas ao mesmo tempo se estava diante de uma provocação… Os rostos dos bailarinos, quando se deram a ver, propunham uma ambigüidade: rostos vivos, mas sem expressão. Mortos-vivos? Vivos-mortos? Desejo e receio de tocar, segurar, romper, violar, cuidar, abraçar, dançar.
Essas são algumas imagens construídas pelo público do experimento do qual participei. Outro aconteceu na mesma noite, logo em seguida – com proposta idêntica, tendo mudado somente o público – e me foi relatado por uma participante: diante da liberdade da proposta, um pequeno grupo que integrava esse segundo público reagiu com violência desde o início do experimento. Esse grupo agredia os bailarinos, imobilizando-os. Algumas pessoas penduravam-se nos braços dos artistas com tal violência que poderiam tê-los quebrado. Os corpos dos artistas em risco, mas a proposta seguiu até o fim.
Havia assistido há alguns anos, em 2004, a uma apresentação desse grupo, onde já me pareceram ter seus limites testados público e bailarinos.1 Mas ali se guardava a distância palco-platéia. Os bailarinos se encontravam, interagiam brevemente, e quando um era deixado só, despencava de frente, inerte. Diversos corpos abandonados, como se perdessem a vida de repente, ou como se fossem lançados ao vazio, despencavam em silêncio até o estampido bruto do encontro com o chão. Cada cena, que culminava em um som impactante, remexia o vazio que jaz nos confins dos espectadores, que reagiam a ela das formas mais diversas e particulares.
A cena artística de vanguarda antecipa o movimento de simbolização que urge em seu tempo. Avant-guarde, palavra francesa que originalmente nomeia o batalhão do exército que abre caminho. Mas como abrir caminho no vazio, dar-lhe expressão? No contexto da arte contemporânea, “pode-se dizer que a arte tem materializado o vazio vivido no cotidiano, apresentando-o ao espectador sem muitos retoques, aprofundando o sentimento de perda de ilusões, e deixando em aberto, no campo da recepção estética, o caminho para a elaboração subjetiva. (Frayze-Pereira, 2008, p. 134)” Assim materializado, radicalmente exposto, o vazio ganha corpo. E um corpo em cena, em exposição, ainda que esteja a expressar a inexpressão, pulsa, demanda trabalho do olhar.
Essa demanda reflexiva, penso, permeou a 28ª Bienal de São Paulo que aconteceu em 2008, e que, em função da proposta de se manter um pavilhão inteiro desocupado – planta livre –, ficou conhecida como “Bienal do Vazio”2, ainda que o título da mostra fosse “Em Vivo Contato”. O amplo saguão vazio, localizado no 2º andar, ficava no centro da mostra, sendo passagem obrigatória para se chegar ao 3º andar, onde estavam as obras expostas. O piso térreo foi transformado em praça, e nela aconteciam expressões artísticas efêmeras, nas quais os limites entre público e obra perderam seus contornos. O primeiro andar, que segundo a curadoria fazia “a conexão dos acontecimentos na praça com o campo da reflexão e da pesquisa do terceiro andar”, colocava “em movimento a noção de história” ao guardar e apresentar documentos já existentes relativos aos artistas e temas da mostra, e vídeos produzidos ali diariamente. Entre eles, um pavilhão inteiro sustentava o vazio. Diante dos movimentos de artistas, obras e público, aquele espaço potencial encarnava a indeterminação (e, para além de sua estrutura arquitetônica, sempre restava amorfo). Mas que pensar quanto à pichação à qual foi submetido o espaço? Para muitos uma violência, um limite transpassado, espaço arrasado. Para outros, mais uma forma de expressão diante da proposta de se estar “em vivo contato”, tão autêntica quanto as demais. Mas o fato é que a reação da Bienal foi a de tratar o acontecido como uma questão policial, perdendo talvez uma oportunidade de se implicar com a radicalidade de sua própria proposta artística.3
Procuro abrir aqui algumas questões quanto à arte contemporânea e o recurso à força em seu contexto (seja a do público que interrompe os movimentos dos bailarinos, seja a dos pichadores, cuja tinta impregna as paredes anteriormente vazias do saguão da Bienal, seja a força de contenção policial, ou até mesmo a das faxineiras a esfregar litros de produtos de limpeza, apagando os rastros daquela situação). E para aproximar-se psicanaliticamente de tais questões, a meu ver, é necessário realizar uma ampliação do conceito de sublimação que inclua as pulsões de morte, mais-além de uma primeira leitura da obra artística apenas como sublimação de Eros. De fato, em uma primeira aproximação considera-se a expressão artística o ápice do processo de simbolização: arte pronta, símbolo realizado. É até curioso como ver uma obra antes que ela esteja terminada se tenha constituído como uma espécie de tabu: o artista esconde o processo, que acontece em seu domínio particular. Obviamente, essa dimensão do processo está presente na arte contemporânea: as manifestações dos artistas contemporâneos são previamente elaboradas, refletidas e “bastante calculadas com recursos extraídos da história da arte, da antropologia, da filosofia e da própria psicanálise” (Frayze-Pereira, 2008, p.133). Mas, pode-se dizer, trata-se do processo de constituição de um corpo onde se terá lugar um segundo processo – de sublimação das pulsões de morte. O lugar simbólico “arte” constitui-se, então, como um corpo onde o que não tem nome pode surgir e, quiçá, ser nomeado, nascer como símbolo. Aí, artista e público estão, ainda que em posições diferentes, no mesmo barco.
Se o vazio contemporâneo urge por ganhar expressão, eis o caminho aberto pelos artistas que avançam a guarda. No entanto, o que surge nesse percurso é freqüentemente abjeto4 – nem sujeito, nem objeto –, beira o indigerível, e é assim mesmo apresentado a um público impelido a viver experiências urgentes de simbolização. O lugar artístico instituído pode, assim, servir de base para o nascimento de traços simbólicos, ou, como vimos, pode ser alvo de ataques. Diante da imposição de trabalho dirigida ao público, a reação bem pode ser a de devolver ao artista o que ele apresenta em estado bruto – traços incompreensíveis expelidos do psiquismo – como quem diz: “resolva isso você!”, ou mesmo: “é isso que tem a me mostrar? Então veja isso!” Expressões do vazio insuportável espelham-se e, no reflexo, surgem como destrutividade – outra face das pulsões de morte.
E mais: um continente capaz de dar algum contorno de experiência para tais pulsões, para o que é de uma ordem sem representação, sem símbolo – capaz de dar forma ao vazio e novamente esvaziar-se –, quer seja esse continente o corpo de um bailarino ou um saguão da Bienal, é um potencial alvo de inveja, esta sempre destrutiva: “a inveja não tolera a alteridade, pois esta, relembrando Merleau-Ponty (O Visível e o Invisível), exige de nós atitude criativa para que dela possamos ter experiência (Frayze-Pereira, 2008, p.144-145).” Em tempo: o contemporâneo habita o limite e, em certo sentido, radicaliza a alteridade: a cada instante que passa, morre, deixa de sê-lo, já é outro. Habita mais o tempo que o espaço, e essa marca está em seu próprio nome. Na arte contemporânea, arte efêmera, os registros do que se passou no tempo de uma expressão artística – fotos, filmes, etc. –, podem vir a ser considerados parte da obra, mas constituem-se talvez como uma possibilidade de luto diante de algo que é, em si, fugaz. Pois a arte que se pode nomear contemporânea faz-se corpo no limite da morte de sua existência no tempo: o contemporâneo, esvaziado naturalmente a cada instante, é o lugar privilegiado da lida com a morte. “E não há dúvida de que é na superfície do corpo que se trava a batalha mais insidiosa e desesperadora porque perdida de antemão, pois [segundo A. Fabris (Il Corpo como Espettacolo nel Dolore)] a “sabedoria da morte desaparece com quem a experimenta” (Frayze-Pereira, 2008, p.133).” Entretanto, não haveria lida possível caso a morte se fizesse presente no homem apenas “naquele instante que marca para ele a cessação de sua vida” (Pontalis, 1977, p.252). Ao contrário, ela está “insidiosamente presente sob as mais diversas faces, em geral muda, às vezes ruidosa, mas sempre atuante ao longo do caminho da existência (Pontalis, 1977, p.252).” E se a morte é sempre atuante, também o é o instantâneo desaparecimento de uma sabedoria sobre ela: “O esquecimento apagaria o que nunca foi inscrito (…). O esquecimento não sabe o que esqueceu. Esqueceu até o esquecimento (Fédida, 1996, p.40).” Esse curto-circuito sendo da ordem de uma eterna repetição: compulsão à repetição.
Freud propõe o recordar e o elaborar como alternativas ao esquecimento, mas depara-se ao longo de seu percurso teórico-clínico com possíveis fronteiras do analisável. Em um estudo sobre esses limites, Pontalis (1977b) observa que os movimentos psicanalíticos realizam-se justamente em direção àquelas que são consideradas as bordas de seu próprio campo. Assim, Freud depara-se com os limites impostos ao seu trabalho pelas pulsões de morte, mas debruça-se sobre elas.
A temática da morte é tão constitutiva da psicanálise quanto a da sexualidade. Acho até que esta recebeu tanto destaque para encobrir aquela. Ambas sairão tão transformadas pela obra freudiana, pelo trabalho do aparelho teórico, quanto a pulsão pelo trabalho do aparelho psíquico (Pontalis, 1977, p.252)
Na esteira da vanguarda freudiana – trilha aberta pelo aparelho teórico –, os “analistas contemporâneos mais sensíveis ao questionamento clínico” vêem-se impelidos a transformar “essas bordas em confins para, a partir deles e não mais de um centro garantido, pensar sua experiência como um todo” (Pontalis, 1977b, p.225).
Na clínica psicanalítica, como no campo das artes, o vazio contemporâneo ganha corpo. E é no tempo dessa existência, antes que desapareça o corpo-suporte do vazio, que se abre alguma possibilidade de simbolizar uma experiência fadada ao esquecimento. A angústia que o vazio desperta aponta para o fracasso do símbolo diante da repetição, e a forma paradoxal pela qual surge na cena psíquica – angústia de abandono e angústia de invasão – revela os dois riscos que corre um terreno frágil, baldio, humano: desertificar-se e assim nada poder nascer, ou ser alvo da violência de uma invasão destruidora, e igualmente nada poder nascer.
De fato, não haveria elaboração possível até que um terreno esvaziado ganhasse corpo em um processo psicanalítico, ou que fosse posto no primeiro plano de um evento do porte da Bienal de São Paulo, ou que ganhasse o corpo de bailarinos a expressá-lo em uma dança “sem vida”.
Para finalizar, retomo a questão da reação da Bienal à pichação do pavilhão vazio, tratando-a como questão policial. Frayze-Pereira (2008) considera que “quando é no campo da arte que a destrutividade se manifesta, portanto, associada ao absolutamente artificial, cria-se um paradoxo que, junto do público, poderia se transformar em disposição para indagar (p. 132).” Aqui o autor se refere à destrutividade apresentada pela obra de arte capaz de despertar indagações, e, com elas, associações, elaborações… No contexto da ação organizada pelos pichadores, ainda que o lugar deles fosse ambíguo – artistas, público ou performance? –, podemos questionar se a destruição da destruição não leva novamente a um curto-circuito que retira de campo a disposição para indagar, onde se arrisca esquecer o ato e, mais-além, seu próprio esquecimento.
(Recordo-me de um acontecimento nem tão recente, do qual soube há um tempo por uma pequena nota em um jornal: foi encontrada através de fotos de satélite, em uma floresta alemã, uma grande clareira feita no formato de uma suástica. A reação imediata foi a derrubada das árvores ao redor. Pensei, na ocasião, se teria sido possível um reflorestamento de tal clareira onde as árvores levassem talvez o tempo de uma geração, o tempo de uma elaboração para encobrirem a memória de uma violência.)
2009-06-10 ensaios 5