“Arte é uma garantia de sanidade.” Louise Bourgeois
Em nota de abertura da exposição Louise Bourgeois: O Retorno do Desejo Proibido, o curador Philip Larratt-Smith enfatiza a relação profunda e consistente da artista francesa com a teoria e a prática psicanalíticas. Segundo ele, a arte de Louise (1911-2010) oferece, ao mesmo tempo, uma contribuição e uma crítica à Psicanálise em relação à sexualidade e à identidade feminina. Sua obra teria por inspiração a vivência de seu próprio processo analítico, no qual a artista ingressou por ocasião da morte de seu pai em 1952, no entanto não se pode reduzí-la a este período. Louise apresenta e problematiza temas complexos, cria interrogantes, numa linguagem visual particularmente inovadora, a cada obra concluída.
João Frayze-Pereira, psicanalista estudioso de arte contemporânea, propõe interessantes questões sobre a aproximação entre a Psicanálise e a Arte. O autor preocupa-se em questionar não somente o que a psicanálise pode oferecer às artes, mas também de que maneira a arte, sobretudo a arte contemporânea, interroga os preceitos psicanalíticos e desafia categorias já existentes.
Segundo o autor, o campo das artes é um abismo de sentidos que mobiliza no espectador estranhamento e vertigem, experiência que também marcaria o trabalho reflexivo do analista. Dessa maneira, a experiência estética faz-se “vizinha” da experiência psicanalítica, única forma de aproximar esses dois campos sem praticar uma “psicanálise silvestre”. Numa atitude análoga ao espectador sensível diante da obra de arte, o analista se inquieta e é interpelado por um enigma ao escutar aquele que sofre.
Ao visitar a exposição de Louise Bourgeois não pude resistir, assim como Freud, à sedução de uma analogia. A instalação Consciente e Inconsciente constituiu-se, para mim, como um pictograma do texto freudiano Construções em Análise (1937).
Consciente e Inconsciente, de Louise Bourgeois.
Detalhe 'Consciente e Inconsciente'
Na obra acima destacada, a artista (cuja família era tecelã) dispõe de materiais como linhas, carretéis e agulhas para dar forma e expressão a algo simultaneamente tão familiar e tão pouco figurável: as noções de consciente e inconsciente. Fios soltos e emaranhados de fios, associações sobrepostas, ‘nódulos’ carregados de representações… o impacto visual produzido é intenso.
A atmosfera de tessitura na produção de Louise faz pensar na função da “construção” na clínica como um intenso trabalho psíquico da dupla paciente-analista, na qual o paciente – diante da impossibilidade de encontrar uma narrativa para sua dor – conta com a disponibilidade sensível do analista enquanto espaço potencial de construção de uma verdade histórica, pela recuperação de fragmentos de uma história perdida, nas palavras de Freud. Penso que o campo bipessoal na análise também parece ganhar importância, uma vez que os fragmentos são comunicados ao paciente, agindo sobre ele.
Talvez a idéia de “costura” não caia tão bem para definir a escuta analítica, pois sugere obliterar sentidos, ao invés de abrí-los. Ainda assim, em alguns momentos parece ser tarefa do analista fazer nomeações, construir uma “trama” de sentido. Sim, melhor usar trama no lugar de costura. Uma trama que permita ao paciente desfazer e refazer as vias das redes representacionais, articulando aquilo de sua história que até então não pôde encontrar vias de expressão. Lembrando que trabalhar com fragmentos pressupõe sempre uma parcialidade, ou seja, o trabalho analítico não visa totalidades sobre os sujeitos.
A ideia de uma verdade histórica, construída no espaço analítico, abre caminho para uma polêmica discussão: seria a Psicanálise ciência ou arte? Particularmente, prefiro uma coisa e outra. Na clínica, o trabalho de “construção” também é possibilidade criativa, possibilidade de simbolizações inaugurais, mas como todo processo criativo, geralmente é acompanhado por muita angústia e pode não produzir efeitos, não comunicar. Diante dos impasses presentes na clínica, quando se trata de lidar com o irrepresentável, penso que a “construção” para o analista, tal qual a arte para a artista em questão, também lhe presta um grande serviço: o de garantir alguma sanidade.
BIBLIOGRAFIA
FRAYZE-PEREIRA, J. A. (2006). Arte, dor: Inquietudes entre estética e psicanálise. São Paulo: Ateliê.
FREUD, S. (1937). Construções em análise. In Edição standard brasileira, vol. 12. Rio de Janeiro: Imago, 1996b.
LARRATT-SMITH, P. (2011). Encarte da exposição Louise Bourgeois: O Retorno do Desejo Proibido, Instituto Tomie Ohtake, SP, entre 07 e 28/08/11.
(1) Psicanalista. Aluna do 4o ano do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
- TEXTO ORIGINALMENTE PUBICADO NO BOLETIM ONLINE DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE Nº 18 – Setembro de 2011.
2013-05-06 artigos 4