Transtornos Alimentares e Psicossoma

 

A gravidade dos transtornos alimentares provoca uma preocupação absolutamente coerente com as questões relativas ao organismo, suas necessidades de nutrientes, de equilíbrio biológico. O comportamento dos pacientes é normalmente posto em primeiro plano: mira-se o comer em demasia, o devorar, as reações compulsivas (indução de vômitos, exercícios físicos compensatórios), a negação em se alimentar. As conseqüências são medidas via índice de massa corporal, exames médicos e nutricionais, ou expostas em imagens bruscas que vão desde a terrível cadaverização do anoréxico até a desfiguração do obeso mórbido.

Por tratarem-se, em casos extremos, de questões de “vida ou morte”, esses transtornos tendem a serem vistos e cuidados, prioritariamente, através de parâmetros sintomáticos concretos e imediatos. No entanto, de que necessitariam tais sintomas que não, justamente, de mediação? Mediação como abertura para aquilo que é da ordem de um “curto-circuito”, que propicie símbolos, nomes, contorno. Apóio-me na Psicanálise ao propor uma mudança de perspectiva – do biológico ao psíquico – a fim de examinar alguns aspectos relacionados a esses fenômenos cada vez mais freqüentes (com isso, meu desejo é possibilitar uma incursão em um ponto de vista, o que obviamente não implica em deixar de considerar a importância de uma atenção aos aspectos – muitas vezes urgentes – relativos à saúde física).

Tal mudança somente é possível levando-se em conta que, para a Psicanálise, o corpo biológico situa-se além do limite do conceitualizável: um órgão – e, no limite, todo o corpo – é, a princípio, oco de símbolo, não passa de carne. O campo simbólico somente advém através de uma elaboração do que se passa no campo somático, quando é construída uma ponte entre um universo bruto e um psiquismo nascente – que desenha os primeiros traços simbólicos a organizar as experiências subjetivas. Essa ponte se constrói quando o que é da ordem dos instintos, das necessidades puramente biológicas, passa a um outro plano, que tange o psíquico: o plano pulsional. Portanto, psique e soma se articulam através da pulsionalidade, formando uma unidade.

O psicanalista André Green (1990), ao refletir sobre a definição de Freud para a pulsão – “um conceito-limite entre o psíquico e o corporal” –, propõe que este “talvez se trate do conceito do que está no limite do conceitualizável, justamente por se tratar de algo situado em uma fronteira, sendo somente o psíquico abrangido pelo conceito, talvez o somático escapando à conceitualização, se quisermos falar dessa conceitualização em termos de psíquico. (p.16)” O que escapa à conceitualização seria o que escapa ao símbolo, e poderia constituir um além do campo psicanalítico. De fato, os sintomas que hoje são chamados “psicossomáticos” compunham, para Freud (1894[1895]), o campo das neuroses atuais, manifestações que estariam fora do alcance do analisável, justamente por não passarem pelo aparelho psíquico, por estarem do outro lado da fronteira que divide o que é ou não passível de simbolização.

No entanto, em um estudo sobre os limites do analisável, o psicanalista J. B.-Pontalis (1977) encontra uma situação paradoxal. A partir da soma das divergências de opiniões de diversos analistas, ele chega a um resultado quanto às indicações para a análise, no que diz respeito ao alcance da técnica, que é expresso da seguinte maneira: “todas as organizações psicopatológicas podem ser abordadas pela psicanálise; nenhuma, nem as neuroses mais ‘clássicas’, é realmente acessível em suas raízes”. Indo além dessa primeira aproximação, ele observa que os movimentos da Psicanálise realizam-se justamente em direção a essas raízes, em direção àquelas que são consideradas as fronteiras de seu próprio campo. Assim, os limites são tidos por esse autor como lugares privilegiados de renovação da Psicanálise e, ainda que os movimentos de ruptura advindos daí não sejam acolhidos de imediato, não haveria como ignorá-los nem deixar de integrá-los a um arcabouço teórico-clínico constantemente em transformação.

Pontalis destaca, ainda, uma tentativa por parte dos “analistas contemporâneos mais sensíveis ao questionamento clínico [de] tentarem transformar essas bordas em confins para, a partir deles e não mais de um centro garantido, pensar sua experiência como um todo”. Para ele, não haveria nisso “o sinal de uma fase pré- ou pós-analítica, mas a tomada de consciência, já fecunda, do que está pressuposto nas tópicas freudianas: elas se dão um espaço psíquico já edificado, com suas ‘fronteiras’ externas e internas, suas ‘províncias’ e sua ‘barreira protetora’. Se psicanalisar é essencialmente instituir esse espaço, a realidade da análise só poderia estar nos limites do analisável”.

No que diz respeito às manifestações psicossomáticas em Psicanálise e, em especial, às questões relativas à alimentação, a realidade da análise – que é vivida no campo transferencial – resgata as experiências constituintes da subjetividade. O trabalho analítico se dirige, portanto, a um campo originário, no qual a função materna – de dar ao bebê um contorno para as manifestações sem nome advindas de seu corpo, de auxiliar na “digestão” das experiências primitivas – serve de metáfora para a função do analista2.

Essa função de dar sustentação para um processo de simbolização, seja ela exercida pela mãe com seu bebê ou pelo analista com seu analisando, propicia uma abertura para o mundo humano: faz um rasgo na ordem instintiva, da qual nasce a pulsionalidade, possibilitando o acesso ao simbólico – constituinte do “eu” e da realidade. Ao mesmo tempo, ela é também a própria lida com um sujeito recém-chegado a esse mundo.

 

Alimentação e Psicanálise

 

Lidamos em Psicanálise com um sujeito cujo psiquismo é construído sobre uma base arcaica somática, sendo ela sempre aquém de simbolização. Segundo Winnicott (1988/1990, p. 44-47), a psique se forma a partir do material fornecido pela elaboração imaginativa das funções corporais de todos os tipos, dando sentido às experiências. Assim, sensações de fome e saciedade, movimentos de alimentação, digestão e excreção, dão forma e suporte a um certo campo do funcionamento psíquico – o campo da sexualidade pré-genital. E, de fato, a Psicanálise se vale com freqüência das relações entre o psiquismo e a nutrição naquilo que diz respeito às primeiras relações objetais.

Para uma primeira aproximação clínica, recorro a um trabalho de curta duração – interrompido – com uma jovem vestibulanda que se queixava de refluxo. Ela sentia vontade de vomitar quando saía de casa, especialmente para o cursinho, o que a fazia retornar para o lar. Uma expressão melancólica ganhou forma, e dizia respeito a uma infância perdida, desvanecimento do seu lugar de criança junto ao aconchego parental. A palavra voltar aparecia com freqüência em suas falas, e isso pude relembrar vivamente em um telefonema ocorrido algum tempo após a interrupção do trabalho. Ela manifestou, naquele momento, a intenção (não levada adiante) de retomar a análise. Disse, justamente: eu acho que vou voltar. Ir adiante – ou mesmo pensar no movimento da vida, na possibilidade de crescer – era vivido com angústia, era literalmente indigesto, e o alimento voltava.

Nessa paciente, a relação com o próprio crescimento enquanto alteridade em si mesma (transformação), a saída do âmbito familiar e conhecido, foram vividas como indigeríveis. Todo esse movimento, que exigiria simbolização, se manteve expresso na concretude do corpo: a alimentação acompanhada de seu avesso – o refluxo, que a levava de volta para casa.

A experiência de relação, nesse breve exame, pode ser apresentada aqui através de um destaque para um fechamento ao outro: há, no jogo “auto-erótico” do refluxo, uma proteção à entrada em contato com tudo o que não é familiar (a entrada em análise aqui incluída) – ou, sob um certo aspecto, uma defesa contra o fantasma do desamparo e da solidão que acompanhariam o crescimento. Reconstrói-se o conforto perdido, na contramão das exigências da realidade – ir ao cursinho, crescer –, ainda que arcando com os sofrimentos proporcionados pelo sintoma.

Mas uma aproximação como essa, que busca um sentido oculto no sintoma, realmente só pode ganhar densidade e realidade analítica na medida em que articula possibilidades de sentidos ao jogo a dois vivido sob transferência. No que se refere aos transtornos alimentares, proponho tratar a relação analítica sob um certo ponto de vista: como comunicação que nutre. Assim, sendo uma análise um processo a dois, a alimentação está aí remetida, necessariamente, à relação com o outro: nutrir, digerir, expulsar os dejetos são, em psicanálise, formas de relação.

Denis Vasse (1987) propõe que “abrir a boca para comer, com o encadeamento da deglutição apaziguadora da fome, não deixa de ter uma ligação com abrir a boca para falar, com o encadeamento da audição apaziguadora que acalma o desejo da presença do outro (p.31).” Essa comparação entre a escuta analítica e a alimentação remete às primeiras experiências do bebê com a mãe, em especial com o seio, fonte vital.

Penso, com Klein (1957) e Winnicott (1988b), que a mais primitiva forma de relação que um ser humano experimenta a partir do nascimento – aquela vivida com a mãe durante a amamentação –, serve de base para a constituição do sujeito e para as suas experiências subseqüentes.

A respeito disso, Klein (1957) faz a seguinte afirmação: “No decurso de todo o meu trabalho, atribuí importância fundamental à primeira relação de objeto do bebê – a relação com o seio materno e com a mãe – e cheguei à conclusão de que se este objeto primário, que é introjetado, se enraíza no ego com relativa segurança, acha-se assentada a base para um desenvolvimento satisfatório. Fatores inatos contribuem para este vínculo. Sob o predomínio dos impulsos orais, o seio é instintivamente percebido como fonte da nutrição e, portanto, num sentido mais profundo, da própria vida (p. 29).” A partir daí, “o seio bom é absorvido e se torna parte do ego, e o bebê, que primeiramente estivera dentro da mãe, tem agora a mãe dentro dele” (p.30).

Ainda quanto à relação com o seio, ela destaca a importância vital de circunstâncias externas (em complemento aos fatores inatos), nas quais está incluída a qualidade dos cuidados maternos: “ser ou não a criança adequadamente alimentada e cercada de cuidados maternais, fruir plenamente ou não a mãe os cuidados com o filho ou ser ela ansiosa e ter dificuldades psicológicas com a amamentação, são todos fatores que influenciam a capacidade do bebê em aceitar o leite com prazer e internalizar o seio bom (p. 31).” Winnicott (1988b), por sua vez, propõe uma “primeira mamada teórica”, conceito que serve de protótipo para a primeira experiência subjetiva de relação, sendo ela, ao mesmo tempo, constituinte da própria subjetividade. “A primeira mamada teórica é representada na vida real pela soma das experiências iniciais de muitas mamadas. Após a primeira mamada teórica, o bebê começa a ter material com o qual criar. É possível dizer que aos poucos o bebê se torna capaz de alucinar o mamilo no momento em que a mãe está pronta para oferecê-lo. As memórias são construídas a partir de inúmeras impressões sensoriais, associadas à atividade de amamentação e ao encontro do objeto.” Haveria em meio a essa construção, em um primeiro momento, “um estado temporário próprio da primeira infância em que ao bebê é permitido pretender um controle mágico sobre a realidade, um controle que, nós sabemos, foi tornado real pela adaptação da mãe, mas disso o bebê ainda não sabe (p.126).” Aquilo que Winnicott abarca sob o conceito de “primeira mamada teórica”, é o próprio movimento rumo à humanização, um salto que faz do corpo orgânico um corpo simbólico. Isso só pode se dar na experiência de relação quando, nas palavras de Denis Vasse (1987), “de repente, a intimidade da relação boca-comida produz sensações – um gosto – irredutivelmente ligadas à intimidade da relação daquele que dá com aquele que recebe, da mãe e da criança” e, assim sendo, “decifrar as sensações que o comer proporciona, diz alguma coisa da maneira inconsciente de ser com alguém”.

Essa experiência primitiva, assim como está na base do desenvolvimento emocional de qualquer ser humano, certamente permeia todo o processo psicanalítico, na medida em que tal campo arcaico serve de base às experiências seqüentes – que, por sua vez, ressignificam aquelas primeiras. Da mesma forma que o mundo adulto enraíza-se no infantil, lugar das primeiras experiências subjetivas com o seio-ambiente, também o campo transferencial remeterá, necessariamente, a tais experiências. Klein (1957) observa em sua experiência clínica, “que a análise percorre o caminho que vai do estado adulto à infância e, através de estágios intermediários, retorna ao estado adulto, num movimento recorrente, para cá e para lá, de acordo com a situação transferencial predominante (p.29).” É nesse sentido que me sustento na proposição de que a escuta analítica, a intimidade entre analista e analisando, em certos momentos de uma análise, se realiza como metáfora da relação íntima da mãe com o seu bebê, que dá o seio e dá palavras, nomeia, auxilia na “digestão” das experiências e sensações da criança, faz-se presença.

O leite com o qual o bebê é alimentado é também a mãe incorporada como presença, desde que haja uma relação de amor mediada pelas palavras: é ela que possibilita a comunicação (do contrário, comer não seria nada além de uma suplência orgânica). E eis que “na satisfação e no apaziguamento da tensão pulsional oral aparece o sorriso como significante de uma relação de presença além da relação de consumo” (VASSE, 1987, p.32).

Assim, uma alimentação que não fosse “codificada por estes movimentos ritmados pela música das palavras e da voz (…) só remeteria a uma atividade neutra de mastigação e deglutição, a um ato de comer desumano – sem gosto, sem perfume, sem palavras. A deglutição, então, só remeteria a si mesma sem fazer ato de presença, sem incorporar. (…) [Quando] a mastigação e o gesto que nutre se encontram desconectados da palavra (…) e a boca não é mais um limite ativo que se incorpora no encontro, ela é um buraco que devora ou vomita, repete ou morde e só discorre para não se entregar à distorção do furor ou do alarido (VASSE, 1987).”

 

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Dupla angústia na base da vida de relação

 

Desejo agora investigar organizações cujo manejo clínico requer uma experiência em direção aos limites, de onde nascem os símbolos: são as organizações comumente chamadas de “casos-limite”, ou “borderlines”. Costuma-se considerá-las em relação à psicose, certamente por remeterem-se, no contexto transferencial, às experiências traumáticas na primeira infância e a uma certa precariedade simbólica. No entanto, muitos analistas hoje concordam com as proposições de Green (1990), que concluiu, através de seus estudos desses casos, que eles não poderiam “ser definidos unicamente em relação à psicose. O que quer dizer que não eram simplesmente psicoses latentes ou psicoses com poucos sintomas, mas sim organizações originais” (p.12). Para ele, essas organizações se caracterizam por apresentar uma “dupla angústia contraditória: a angústia de separação, com todos os problemas acarretados por qualquer luto e pelos lutos intermináveis e não vivenciados” e a “angústia de intrusão” (p.13). “Se centralizássemos os acontecimentos em torno dessa dupla angústia, poderíamos efetivamente compreender que falamos de limites existentes entre o ego e o objeto, seja quando o objeto parece inacessível, inatingível, sempre fora do alcance do investimento, seja, ao contrário, quando temos o objeto ‘mordendo’ o território do ego, perseguindo-o dentro de seu próprio território (p.13).” Temos, nessas organizações limites, uma diferença fundamental em relação a o que se passa na psicose: há limite entre eu e outro, e toda defesa aí construída age no sentido de preservar uma existência vivida sob ameaça (sendo a alteridade experimentada como ameaçadora da integridade psíquica).

Os nós traumáticos intrínsecos à dupla angústia, bem como as defesas contra ela construídas, remetem-se às primeiras relações, aos momentos precoces de simbolização e delimitação do eu, sendo constantemente rearticulados na vida adulta. Assim, mantendo suas raízes no contexto dos primeiros cuidados dispensados ao bebê, os sintomas atuais exigem da análise um trabalho de base: uma reedição do contexto originário no campo transferencial, para que ele possa ser “revivido” de um outro modo.

Isso requer um manejo delicado, pois o que se encontram de fato na clínica dos chamados “casos-limites” são expressões ambíguas, e uma situação complexa na qual ambas as angústias se articulam, sendo vividas sob um movimento paradoxal: “a angústia de separação atinge seu grau máximo quando o objeto está presente e (…) a angústia de intrusão não se manifesta de modo predominante quando o objeto está presente, mas, precisamente, quando o objeto não está presente” (GREEN, 1990, p.13-14)3.

Aqui novamente nossa atenção volta-se para a metáfora da alimentação relacionada ao manejo clínico, focando o erotismo oral a delinear os primeiros traços simbólicos da experiência de contato com o outro, via nutrição e via comunicação. Consideremos, portanto, a precariedade dos limites constituídos entre eu e outro e as defesas presentes nesse campo.

Em um contexto primitivo no qual o bebê depende absolutamente de cuidados, da presença do objeto, a boca “pode encontrar-se completamente desinvestida pela libido, quando se verifica – de uma certa maneira fantasmática, que pode ser a priori ou a posteriori4 – que falar não serve para nada, isto é, que não há ninguém para escutar quem fala, quem grita, quem demanda, quem tem fome” (VASSE, 1987, p.13). Poderíamos relacionar o desinvestimento do objeto somente à angústia de separação. Porém, há uma complexidade aí envolvida: o terreno abandonado é justamente aquele que tende a ser invadido (por um câncer, por um alimento indigerível, por algo sem nome).

De outro modo, podemos também pensar no que advém de uma experiência de relação mãe-bebê onde a amamentação é operatória, invasiva. Quando o seio é oferecido sem que o desejo tenha se manifestado – até mesmo calando-o –, resta a criatividade reclusa, a boca fechada (ou a deglutição desvitalizada, que é a boca fechada ao sabor). Um ambiente “que satisfaz operatoriamente a todas as necessidades, antes mesmo que elas se exprimam, até mesmo para que elas não se exprimam de outra maneira, a não ser aquela que ‘se’ possa responder, (…) tem como aspiração inconsciente nada querer saber do que fala originariamente no homem’ (VASSE, 1987).” Um terreno invadido, que não tenha vida própria (onde nada de autêntico pôde crescer e frutificar), e só encontre uma possibilidade de existência através da adaptação a ao ritmo do invasor5, restaria absolutamente sem estofo diante de um abandono. Eis mais uma ilustração da imbricação complexa que nos leva a não considerar as angústias propostas por Green (1990) isoladamente.

É possível, a partir dessas colocações, vislumbrar os impasses vividos no contexto clínico dos “estados-limites”, em que tanto a distância eu/objeto quanto a sua proximidade tendem a serem perturbadoras. Mas é exatamente nesse campo que a construção de um novo âmbito de relação se impõe, de modo a que os movimentos do analisando sejam sustentados, ventilando o que se calou, dando-lhe expressão.

 

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2008-09-02 artigos 5