“Cura pela fala” ou, em inglês mesmo, como foi cunhada nos primórdios embrionários da Psicanálise: talking cure. De que se trata esse processo? O que se entende aqui por “cura”?

Proponho realizar um breve exame quanto ao movimento de cura – de elaboração psíquica – que se realiza através da fala quando acolhida por uma escuta analítica.

O eixo que sustenta um trabalho clínico é a comunicação, implicando a abertura – de ambos os lados – a um outro desconhecido. Acontece, nesse ínterim, a construção de uma relação cuja matéria prima é a própria história do analisando e as lacunas existentes nela, além de, por parte do analista, uma escuta marcada por tudo aquilo que a fecunda (análise pessoal e supervisão, estudos teóricos e experiência clínica e, evidentemente, a história de vida do analista).

Um contexto de relacionamento é sempre marcado por um turbilhão de afetos que remetem-nos às origens da subjetividade, concomitante à percepção da existência da alteridade.

A psicanalista Joyce McDougall (1995/1997) inicia o prefácio de seu livro As Múltiplas Faces de Eros dizendo que

“A sexualidade humana é inerentemente traumática. Os múltiplos conflitos psíquicos produzidos na busca de amor e satisfação, os quais surgem como resultado do choque entre o mundo interno de pulsões instintivas primitivas e as forças coercitivas do mundo externo, iniciam-se com nosso primeiro relacionamento sensual. (p.IX).”

Esse primeiro relacionamento é conflituoso por remeter-se a algo que se perdeu: a experiência mítica de uma unidade paradisíaca onde eu e mundo são indiferenciados, onde não há tensão. Essa é a imagem de um eu-ideal, protótipo da completude. Do ponto de vista da criança, nesse momento tão precoce, as noções de eu e de outro são ainda extremamente insipientes e precárias, experimentadas como violência:

“A noção de um ‘outro’ – de um objeto separado do self –, lentamente adquirida, surge a partir da frustração, da fúria e de uma forma primitiva de depressão que todo bebê vivencia em relação ao objeto primordial de amor e desejo. (MCDOUGALL, 1995/1997, p.IX).”

A existência da alteridade é, portanto, segundo a autora, a primeira ferida narcísica com a qual o sujeito humano tem de lidar. E essa lida, dada a precariedade do sujeito humano em formação, depende justamente de um outro que exerça a função tanto de conter e auxiliar na elaboração psíquica das experiências advindas da realidade externa e interna, o que faz com que a origem do sujeito tenha, inevitavelmente, um certo caráter de assujeitamento.

Abre-se aqui um destaque quanto ao fato de que, para o bebê, a ruptura da ilusão de unidade – essa lenta aquisição de uma noção de ser separado, de que a mãe é independente, vive fora de seu campo de onipotência e pode tanto supri-lo quanto frustrá-lo – pressupõe a existência de um terceiro, ou seja, algo para além daquela dupla originária, que é para onde a mãe se dirige na medida em que a criança tampouco é aquilo que a completa. A triangulação edípica inaugurada nesse momento mítico1 propicia a entrada do sujeito no campo do desejo, justamente marcado pela falta, pela incompletude.

Quanto a isso, levando-se em conta ser o desejo nascido de uma perda, Fabio Herrmann (1991/2003) pergunta-se “o que quer o desejo, originalmente” (p.32). Ele observa que “na teoria freudiana, deparamo-nos freqüentemente com uma tendência conservadora no homem”, e propõe que “tal tendência conservadora é um ponto de partida razoável para a clínica” (p.32). Pois bem, Herrmann afirma que, “em qualquer momento da análise, existe uma dimensão de contrariedade fundamental, o desejo de bastar-se, de ser inteiro e possuir-se por dentro, de imaginariamente voltar a ser um só com as fontes de satisfação (p.32)” Há, fundamentalmente, portanto, o desejo da recuperação de um estado originário de não-desejo. Porém, a humanização fundar-se-ia exatamente “quando se rasga o narcisismo primário” (p.32), e aí essa dimensão de contrariedade adquire outra forma: o movimento do luto, movimento de elaboração. A partir da perda da condição mítica de ser um com o mundo, ser completo, origina-se a busca por objetos substitutivos. “Segundo a teoria freudiana do luto, o bom objeto substitutivo é o que traz certas marcas daquele que nos abandonou; na perda de si mesmo, conseguintemente, o sujeito volta-se enlutado para tudo o que possa representar o homem (…). Assim é que o desejo deseja o mundo, porém com um travo de desgosto, já que não desejaria ter de o desejar, queria sê-lo, de que resulta ser um mundo objetal enlutado, aquele que almeja o desejo humano. (p.33)” Isso nos interessa especialmente. Retomamos aqui o que há de primordial para que se desenvolva uma análise: a comunicação; e aí encontramo-nos diante do movimento por excelência em direção ao outro, ao que falta, ao que supostamente restauraria o vazio deixado por aquilo que foi perdido. O falar livremente do analisando é marcado por esta ambigüidade do desejo da qual fala Herrmann: deseja-se o não desejo, deseja-se o mundo. Ter de comunicar-se, ter de falar, mexe naquela primeira ferida narcísica instauradora da subjetividade: é um anti-espelho de Narciso que reflete a incompletude. No entanto, ao mesmo tempo, a própria comunicação sacia (momentaneamente) a “fome” do que foi perdido. Assim, com Pontalis (1988/1991), pensamos que “a linguagem não é captura: não se apodera de nada da substância do real, nem sequer da mais ínfima porção. (…) Mas ela tampouco é renúncia; não admite confessar que: ‘isso não é pra mim’. Faz parte de sua própria natureza ir em direção ao que não é ela. Já que nasceu da perda e que nada tem que lhe pertença, seu apetite é enorme! (p.144)” Nesse sentido, não há por que opor o que é expresso facilmente pelas palavras e o inefável. De tal modo entrelaçam-se a falta e a fala, que disso resulta que “na própria operação da linguagem inscreve-se a impossibilidade de satisfazer sua exigência. A não-realização do desejo está nela, mas o desejo não tem limites”. A fala compõe-se com o desejo, movimenta-se entre o impossível e o ilimitado: há nela um trabalho em direção à completude perdida – “a certeza de uma coisa sem nome nos acompanha. De uma coisa que se declararia por si, tal como é” (e que não mais exigiria palavras…) – mas, ao mesmo tempo, essa certeza é como um “horizonte permanente” que alimenta movimentos: “só ela assegura a tensão da fala na sessão, que é levada ao extremo” (PONTALIS, 1988/1991, p.144).

Articulada assim ao desejo – que se inaugura pela falta e, nas palavras de Herrmann, dirige-se a um “mundo objetal enlutado” –, a fala na análise realiza um trabalho de elaboração: Pontalis reflete sobre as “palavras de Freud para descrever o luto – ‘A tarefa é realizada detalhadamente, com grande dispêndio de tempo e de energia de investimento, e, durante esse período, a existência do objeto perdido prossegue psiquicamente’” –, e encontra nelas “a definição da fala na análise, de uma verificação que só pode ser efetuada, dolorosamente, ali, e não em outros lugares” (PONTALIS, 1988/1991, p.143).

O contexto analítico proporciona um lugar para se viver a dor do luto primordial (pela perda de algo que não tem palavra), onde “no detalhe, no ínfimo, no passo a passo dos restos, a fala, quando nada a comanda a não ser seu próprio impulso, reconduz ao objeto perdido, para dele se desligar” (PONTALIS, 1988/1991, p.143).

2008-09-02 ensaios 5