O percurso que desenvolverei aqui se insere no campo da “clínica das situações-limite”. Não escolhi discutir o que se tem chamado de situações-limite e todas as questões a respeito das definições psicopatológicas contemporâneas. O que gostaria de tentar pensar é o lugar do analista nessa clínica.

Roussillon (2013), ao falar da clínica das situações-limite diz que ela tem como particularidade sacudir o enquadre analítico tradicional e que isso tem como consequência impasses contratransferenciais. Esses impasses levam a algo inevitável nessa contratransferência: “a elaboração pessoal, o fato de que essas análises nos obrigam a continuar nossas análises.” (p.64)

Nessa tal “clínica” o acento é colocado nas relações precoces. Roussillon retoma Freud em “Além do princípio do prazer” para nos dizer que na compulsão à repetição, mais importante do que a destrutividade, é que as experiências que se repetem são as mais precoces e que elas se repetem devido a fragilidade da capacidade de síntese do sujeito. Ainda com Freud, em “Construções em análise”, Roussillon nos diz que as experiências precoces são aquelas que aconteceram antes do aparecimento da linguagem verbal. Ele aponta que em Freud essa mudança de acento gera uma modificação no trabalho analítico:

Quando ele (Freud) faz suas observações sobre experiências arcaicas, sobre o retorno alucinatório, faz uma proposta de modificação da inflexão do trabalho psicanalítico. Até então ele estava centrado no desejo do sujeito, na tentativa de tomada de consciência dos elementos recalcados, nas resistências do sujeito em reconhecer aquilo que tem a ver com seu desejo inconsciente. Porém, Freud vem colocar que em situações extremas isso é inútil. É preciso fundar o tratamento sobre o fato de reconhecer o núcleo de verdade histórica contido no interior da manifestação sintomática. (…) Não estamos mais em busca do desejo do sujeito, estamos em busca daquilo que ele tenta contar, do núcleo de verdade, de alguma coisa essencial em sua história. (Roussillon, 2013, p.67)

Quando o grupo de pesquisa de Roussillon se debruça sobre os dois primeiros anos de vida do bebê, uma das surpresas é que “o problema maior na relação do bebê com sua mãe e da mãe com seu bebê é tanto se ligar ao objeto quanto se diferenciar dele.” (p.68)

Isso nos leva a pensar que com alguns de nossos pacientes o que fazemos é sustentar a busca das tentativas de contar sobre a ligação e diferenciação dos objetos primordiais. Um contar de uma época em que a linguagem verbal ainda não falava o que estava sendo vivido. Do meu ponto de vista esse contar se dá através do que o paciente vai fazendo o analista viver contratransferencialmente, dos excessos e faltas do analista e das respostas a esses excessos e a essas faltas que vão sendo dadas pelo paciente.

Assim, segundo Roussillon (2013), estamos no campo da “problemática da presença, da problemática da influência de um sujeito sobre outro. Para além dos elementos que tradicionalmente possuímos sobre a teoria da ausência, nós também devemos tentar pensar sobre uma teoria dos modelos de presença” (p.68). Ainda, segundo esse autor:

Trata-se de uma característica que encontramos em todas as patologias do narcisismo, uma dupla ameaça no encontro com os objetos: se eles estão muito próximos, são intrusivos; se eles distanciam-se, estão abandonando. (…) é uma clínica do sujeito perdido. Ele está perdido na própria intensidade de suas defesas, ele não sabe mais o que sente, não sabe mais nem onde está, está em algum lugar fora dele. Então vamos procura-lo. (p.68)

O que Roussillon propõe é que não façamos um trabalho de interpretação, já que ela pode ser ao mesmo tempo intrusiva e abandonante e sim um jogo de esconde-esconde. Como quando brincamos com crianças de dois anos:

Eles não estão bem escondidos, estão excitados porque é terrível, e sabemos de cara onde eles estão. Mas se vamos procura-los onde eles estão, não tem brincadeira; então não fazemos isso. A gente vai para o outro lado, a gente fala alto ‘será que fulano está escondido ali atrás?’ (…) A brincadeira/jogo consiste em se aproximar progressivamente. Em primeiro lugar, não abandono porque eu procuro e, em segundo lugar, e, em segundo, não invado porque eu não acho! (Roussillon, 2013, p.69)

Balint (1993), em seu livro “A Falha básica”, está às voltas com as questões trazidas por pacientes que ele chamou de regressivos. Segundo esse autor, em suas análises, esses pacientes precisam poder criar e manter uma certa relação objetal com o analista. Uma relação que diz respeito a uma época em que há interdependência entre mãe e bebê, em que a mãe é tão dependente do bebê quanto ele dela. Uma relação que diz respeito a um período pré-verbal, difícil de expressar em palavras convencionais adultas.

Balint (1993) divide essas relações objetais primitivas em três formas, são elas:

(a) a mais primitiva, que chamamos de amor primário ou relação primária, uma espécie de mistura interpenetrante harmoniosa entre o indivíduo em desenvolvimento e suas substâncias primárias ou objetos primários; (b) e (c), a acnofilia e o filobatismo, que constituem entre si uma espécie de contrapartida, pressupondo já a descoberta de objetos parciais e/ou totais bastante estáveis. Para o indivíduo predominantemente acnofílico , a vida só é segura em íntima proximidade com o objeto, enquanto que os períodos ou espaços entre os objetos são sentidos como horrendos e perigosos (…) Ao contrário, os indivíduos predominantemente filobáticos sentem os objetos como inseguros e perigosos, estando inclinados em dispensá-los (…). (p.152)

A partir daí Balint começa a apresentar questões a respeito dos “modelos de presença” do analista com os pacientes regressivos que podem alternar esses modos de relação primitivos. Ele ressalta que a presença do analista é muito importante nos momentos regressivos , “não apenas pelo fato de que deve ser sentido como presente, mas devendo estar todo o tempo à distância correta – nem muito longe, a ponto do paciente poder sentir-se perdido ou abandonado, nem tão perto, a ponto de que o paciente possa se sentir impedido ou sem liberdade – de fato, a uma distancia que corresponda às reais necessidades do paciente (…)” (p.164) O analista também deve estar pronto para alternar momentos em que o paciente precisa de uma íntima proximidade e momentos em que ele pode ser dispensado.

Ainda a respeito desse modo de presença, Balint (1993) afirma:

em certos momentos, o analista deve fazer tudo o que puder para não se tornar ou proceder como um objeto independente, bem delimitado. Em outras palavras, deve permitir que seus pacientes se relacionem ou existam com ele, como se fosse uma das substâncias primárias. Isso quer dizer que o analista deve sustentar o paciente, não ativamente, mas como a água suporta o nadador, ou a terra, o caminhante, isto é, estar presente para que o paciente o utilize sem muita resistência a ser usado. Na verdade, alguma resistência não é apenas permitida mas essencial. Entretanto, o analista deve ter cuidado para que sua resistência crie apenas o atrito suficiente para o avanço, mas definitivamente não muito mais, senão o progresso pode se tornar muito difícil, devido à resistência do meio. Além e acima de tudo isso, deve estar presente, deve sempre estar presente, e deve ser indestrutível – como o são a água e a terra. (p.154)

Mais uma vez citamos Balint (1993) no seu esforço de definir esse modo de presença:

(…) o analista deve funcionar, durante tais períodos (regressivos), como um provedor de tempo e de meio. Isso não significa que tenha a obrigação de compensar as privações precoces do paciente, fornecendo-lhe mais cuidado, amor e afeto do que os pais do paciente o fizeram originalmente (e, mesmo se tentasse, quase com certeza iria fracassar). O que o analista deve fornecer – e, se possível, durante apenas as sessões regulares – é suficiente tempo livre de tentações extrínsecas, estímulos e exigências, inclusive as originadas do próprio analista. A finalidade é que o paciente possa se tornar capaz de encontrar-se, aceitar-se e continuar por si mesmo, sabendo todo o tempo que existe uma cicatriz em si, sua falha básica, que não pode ser ‘analisada’ para fora da existência; além disso deve poder descobrir seu caminho para o mundo dos objetos – e não que lhe mostrem o caminho ‘correto’, por meio de alguma profunda e correta interpretação. Se se puder fazer isso, o paciente não sentirá que os objetos lhe são impingidos e o oprimem. Isso se dá enquanto o analista puder oferecer um entorno melhor, mais ‘compreensivo’, mas nunca de outro modo, particularmente não sob a forma de mais cuidado, amor, atenção, gratificação ou proteção. (…) considerações desse tipo podem servir de critérios para decidir se determinado ‘anseio’ ou ‘necessidade’ deve ser satisfeito ou reconhecido mas deixado insatisfeito. (p.165)

Esse modo de presença, segundo o autor, corre riscos em relação não só às ausências ou distâncias grandes demais, mas também aos excessos, ao excesso de fala, ao excesso de interpretação.

O analista que, sempre que possível, interpreta tudo como transferência, se torna, segundo ele, um objeto poderoso e inteligente, forçando o paciente a regredir a um mundo acnofílico. Toda a interpretação da transferência diz respeito a uma relação entre “um objeto muito importante, onipotente, o analista, e um sujeito diferente, que, naquele momento, não pode sentir, pensar ou experimentar qualquer coisa que não esteja relacionada com o analista.” (Balint, 1993,p.155). O analista dá assim ao paciente muitas oportunidades de dependência e poucas chances para que ele possa fazer descobertas independentes ou criar algo por si mesmo. Segundo o autor, o analista só deve fornecer uma interpretação se sentir que o paciente precisa. Nesses momentos, não fornecer interpretação poderia ser sentido pelo paciente como uma exigência ou estimulação. O silêncio do analista, por exemplo, pode ser vivido como invasivo em alguns momentos e o paciente pode achar que ele tem que fazer alguma coisa com esse silêncio.

Nessa presença reservada que suporta silêncios e caos o analista deve “aceitar sem reservas o fato de que as palavras se tornaram pouco confiáveis, suspendendo sinceramente, pelo tempo necessário, qualquer tentativa para forçar o paciente a voltar ao nível verbal. Isso significa abandonar qualquer tentativa de ‘organizar’ o material produzido pelo paciente (…) e tolerá-lo para que possa permanecer incoerente, absurdo, inorganizado, até que o paciente – depois de voltar ao nível edípico da linguagem convencional – torne-se capaz de fornecer ao analista a chave para entende-lo.” (Balint, 1993, p.163)

Balint (1993) enumera diversos termos utilizados por diversos autores para descrever esse tipo de relação objetal , mas afirma que todos descrevem características comuns que seriam ideais a todo objeto primário ou substância primária: “não deveria existir nenhum objeto opressivo e exigente, o entorno deveria ser calmo, pacífico, seguro e não inoportuno, que deveria estar presente e que deveria ser favorável ao sujeito, mas que o sujeito não precisaria de nenhum modo notar, agradecer ou preocupar-se com ele.” (ps.166-167)

 

Bibliografia

Balint, Michael. A falha básica: aspectos terapêuticos da regressão. Trad. Francisco Frank Settineri. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993

Roussillon, R. Comentários de René Roussillon. In Figueiredo, L.C., Savietto, B., Souza, O. (orgs.) Elasticidade e limite na clínica contemporânea. São Paulo: Escuta, 2013.

2015-04-30 artigos 6