Desde os primeiros trabalhos em psicoterapia aos quais Freud se dedicou – e com os quais rompeu, posteriormente, dando origem à psicanálise –, a palavra era considerada um instrumento essencial para o tratamento psíquico. Menos que um tratamento da alma, ele concebia a psicoterapia como um tratamento pela alma, isto é, através de meios que atuassem direta e imediatamente sobre o anímico do ser humano, sendo a palavra o meio privilegiado para isso (FREUD, 1905/1981).
No entanto, foram tão radicais as transformações do valor e do uso da palavra para Freud ao longo de suas investigações e aplicações técnicas, que elas culminaram em uma forma extremamente peculiar de comunicação: a que acontece no âmbito de um tratamento psicanalítico.
Aqui, de saída, cabe apresentar um breve panorama de tais transformações ao longo de um período que se pode chamar pré-psicanalítico, em que Freud oscilou entre três tendências terapêuticas – a hipnose, a sugestão e a catarse – para, progressivamente, romper com elas, dando lugar àquela que viria a ser por ele considerada “a regra fundamental da psicanálise”: a associação livre.
Com relação ao trabalho a partir da sugestão, Freud observou uma série de limitações, tais como o caráter provisório da cura alcançada por esse meio e a conseqüente dependência do doente com relação ao médico. Porém, essencialmente, associou a precariedade da cura à superficialidade da técnica, que negligenciava as forças psíquicas atuantes na formação dos sintomas.
Em favor do método catártico de Breuer, Freud abriu uma via para a descoberta da existência de sentidos inconscientes para os sintomas, relativos a uma origem traumática que se deveria recordar. Através da rememoração de um fato passado (traumático), o afeto que estava ligado ao sintoma poderia ser experimentado em uma catarse que o liberaria de um destino patológico. Aqui já se pode destacar que, ainda que a descarga emocional catártica acontecesse sob hipnose ou sob alguma técnica que sugerisse ao paciente ir ao encontro da recordação patogênica, a fala curativa essencialmente não era mais a do médico, mas a do próprio paciente convidado a falar sobre seus sintomas articulados à sua história (FREUD & BREUER, 1895/1981; FREUD, 1903 [1904]/1981).
Ao longo desse percurso, Freud abandonaria também a prática da hipnose, pois, segundo observara, ela encobria a resistência de modo a somente propiciar dados incompletos e êxitos passageiros (FREUD, 1905/1981). No entanto, mais que isso, segundo Roudinesco e Plon (1997/1998), “na mais pura tradição do Iluminismo”, ele resgatou “a grande idéia da liberdade do homem e de seu direito à fala” (p.336). Portanto, foi “ao se desligar progressivamente da prática da hipnose, entre 1880 e 1895, que ele passou pela catarse, para inventar o método psicanalítico propriamente dito, baseado na associação livre, ou seja, na fala e na linguagem (p.108).” Laplanche e Pontalis (1982/1998) apontam para o fato de que “essa evolução técnica é paralela a uma mudança de perspectiva na teoria do tratamento: levar em consideração as resistências, a transferência, enfatizar cada vez mais a eficácia da elaboração psíquica e da perlaboração (p.61).” Deve-se destacar, ainda, que as transformações anteriormente mencionadas – relativas à comunicação que acontece no transcorrer de um tratamento – permearam esta mudança de perspectiva, conduzindo a uma clínica da escuta. Quanto a esse processo, Roudinesco e Plon (1997/1998) recordam a “versão lendária do nascimento da psicanálise, atribuindo sua origem a duas mulheres (…). À primeira, tratada por Josef Breuer, atribuiu-se a invenção da terapia pela fala, e da segunda, tratada por Freud, disseram que ela permitiu a invenção de uma clínica da escuta, obrigando o médico a renunciar a uma observação direta e a se manter recuado, atrás do paciente (p. 604-605).” Um dos pilares fundamentais a sustentar um trabalho psicanalítico, em complemento à associação livre do analisando, fica sendo, portanto, a escuta peculiar do analista, que recebe as comunicações do analisando deixando funcionar o mais livremente possível a sua própria atividade inconsciente. Em suas “Recomendações aos Médicos que Exercem a Psicanálise” (1912/1981), Freud propõe a atenção flutuante como sendo esse modo de o analista escutar o analisando, sem privilegiar ‘a priori’ qualquer elemento do discurso. “Assim como o paciente deve comunicar tudo o que sua introspecção o revela, abstendo-se de toda reflexão lógica ou afetiva que o induza a fazer uma seleção, também o médico deverá colocar-se em situação de utilizar tudo o que o paciente o fornece para a interpretação e a descoberta do inconsciente oculto, sem substituir com a sua própria censura a seleção à qual o paciente renunciou (p.1657).” Assim, em suma, o analista deve renunciar à sua atividade consciente ao escutar o analisando. E a tal ponto seria esperada essa forma de escuta, que o objetivo de Freud era justamente o de atingir uma comunicação entre inconscientes. Com relação a isso, ele chegou a destacar o que considerava um fato evidente: que o sistema inconsciente de um indivíduo pode reagir ao de outro, excluindo absolutamente o sistema consciente desse processo (FREUD, 1915/1981).
Laplanche e Pontalis (1982/1998), evidenciam a dificuldade desse modo de comunicação, indicando haver um risco de as próprias motivações inconscientes do analista guiarem a sua atenção. Nesse sentido, eles afirmam não haver dúvidas quanto ao necessário papel da análise (didática) à qual deve se submeter o analista, tanto quanto da auto-análise de sua contratransferência.
É possível, ainda, pensar na radicalidade dessa modalidade de escuta orientada pela atenção flutuante não mais como comunicação, mas justamente como ruptura desta. Segundo Fédida (1986/1989), a escuta analítica seria, por si só, “apropriada para designar o lugar disjuntivo (distância, dissimetria, diferença/diferimento…) do analista (…) [sendo], em si mesma, designativa da ruptura de comunicação com a qual se instaura a situação analítica (p. 118).” Algo semelhante é expresso por Herrmann (1991/2003), quando afirma ser a ruptura do campo escolhido pelo paciente para a comunicação – realizada pela escuta do analista – “o verdadeiro selo da operação analítica”, levando o analisando “a perceber que em suas palavras há sempre muito mais do que pretendia dizer” (p.40).
No entanto, o terreno da escuta psicanalítica é ainda mais complexo, pois devemos também considerar, como evidenciam Laplanche e Pontalis (1982/1998), que “é preciso compreender a regra da atenção flutuante como uma regra ideal, que, na prática, encontra exigências contrárias: como conceber, por exemplo, a passagem à interpretação e à construção sem que em dado momento o analista comece a privilegiar um certo material, a compará-lo, a esquematizá-lo, etc.? (p.41).” Há uma tensão na escuta psicanalítica que já se pode vislumbrar pelo próprio paradoxo contido na expressão “atenção flutuante”, que une termos essencialmente contrários. Tal paradoxo é expresso, por exemplo, nas palavras de Mijolla-Mellor (2002): ao mesmo tempo em que ela propõe ser fundamental em um trabalho clínico “adotar um ponto de vista fenomenológico que restitui ao olhar a inocência que o conhecimento o fez perder”, e que, “para o psicanalista, esta posição subjetiva é a do tempo de sua escuta clínica”, ela faz uma ressalva, indicando que “para Freud e, provavelmente, para os outros [psicanalistas], esta via é ligada também a uma fantasia de retirar das profundezas um objeto-origem, palavra ou cena que reencontra a posição mítica e a situa no próprio coração da teoria (p.132).” Esta autora evoca o termo freudiano forschertrieb – pulsão de explorar – e o associa ao psicanalista diante do discurso de seu paciente.
Frayze-Pereira (2002), por sua vez, considera a escuta analítica comparável à apreciação estética de uma obra artística, tendo ela dois momentos. Ele observa haver em ambas um “primeiro tempo – o tempo da experiência – segundo o qual o olhar vai ao encontro da realidade sensível que se oferece a ele sem reconhecer nela estruturas fixas” (p.37). O princípio da atenção flutuante propicia ao analista um segundo momento em que, aos poucos, é possível apreender um sentido que emerge entre analisando e analista – ou entre a obra e o receptor – “na forma de articulações insuspeitadas que vão se tornando evidentes gradualmente” (p.37). Contudo, a tensão anteriormente destacada não se desfaz, pois o tempo da experiência na verdade nunca deixa de estar presente, permeando a relação analítica em todos os momentos. E, do mesmo modo, a forschertrieb evocada por Mijolla-Mellor é parte constituinte de uma escuta (ou olhar) disposta a dirigir-se “ao encontro da realidade sensível”.
Nesse sentido, Fédida (1986/1989) alude a Ferenczi e ressalta que duas qualidades complementares exigidas do analista – a sensibilidade constante e a apreciação consciente da situação dinâmica (entre analista e analisando) – “ponderam e regulam a prática analítica, segundo a elasticidade exigida” (p.99). Aqui se entrevê uma característica do projeto psicanalítico freudiano que deve ser destacada, na medida em que marca profundamente o modo de escutar do analista (desde Freud até os contemporâneos): trata-se do “deslocamento teórico da metapsicologia freudiana do conceito de inconsciente para o da pulsão” como sendo “o signo revelador de uma virada crucial do determinismo para o indeterminismo” (BIRMAN, 1997, p.159).
Uma proposta de pesquisa de um determinismo dos processos psíquicos (encontrar a recordação patogênica, lembrar um fato vivido e esquecido, teoria da sedução…) rompe-se frente à própria experiência clínica e ao trabalho do aparelho teórico freudiano. “A partir de agora a figura do analista deve se orientar, na experiência analítica, pelos efeitos e pelas indicações da transferência” (BIRMAN, 1997, p. 159).
A referência do sonho continua a ser emblemática para se pensar as formações do inconsciente, e a interpretação dos sonhos realizada por Freud (1900) mantém-se como base para a interpretação de quaisquer destas formações. No entanto, a relação transferencial – “única formação do inconsciente atual, apreendida em seu processo e não só em seu resultado” (PONTALIS, 1977/2005, p.143) –, com todo o indeterminismo nela presente, é, evidentemente, de onde a escuta psicanalítica parte e para onde ela se dirige.
2008-10-10 ensaios 5